Fon Fon
Fon Fon. Ballet Stagium. Espetáculo delicioso, leve, fluido, vital, que busca uma expressividade espontânea, natural, primitiva e nos lança numa deliciosa viagem do tempo em direção a um Passado de poesia, esperança, magia.
Diz-se que “povo sem memória repete a História”. E ao risco dessa perda, nosso país e o mundo vêm sendo lançados implacavelmente, com o total desrespeito à tradição e ao Passado que têm se imposto em todas as vertentes. O Stagium sempre nos salva deste tipo de perda, lembrando-nos, em seus espetáculos, da importância e vitalidade de nossas raízes e origens culturais. Uma vez mais, Marika Gidali e Décio Otero falam, por meio de corpos em cena, de música e imagens, a linguagem que faz pulsar nossa brasilidade original, tradicional, tão massacrada, desprezada e esquecida hoje, soterrada pelo impacto da arte globalizadora, comercial, homogeneizante. Seu espetáculo é memória, é História viva, é cultura de raiz, é essência, é Passado renascido com cheiro de novidade. Assim recriada e revitalizada, nossa tradição cultural é “falada” por uma linguagem ingênua, espontânea, expressiva, que traz à cena o clown, a gestualidade, a coreografia e a grafia das marionetes, o rádio, o “cartoon”, a charge. Numa confluência entre códigos (intersemiose), o espetáculo é tecido como entrelaçamento entre formas expressivas. E ao centro delas, a dança surge como ponto de confluência, atraída pela música de Chiquinha Gonzaga, pelas melodias e harmonias que marcaram o início do século XX no plano da criação tanto popular quanto erudita brasileira. As soluções cenográficas, que trazem ao palco a charge e a sugestão metonímica de um contexto que nos reporta à era do rádio e à festa de rua, são simples e de uma criatividade instigante (Viva Fábio Vilardi!), convidando à magia, à fantasia, à imaginação. E à nostalgia.
Dizem Martin Buber e Octavio Paz que é no aqui e no agora, nas pequenas coisas, que a otredad (Paz) ou o dialógico (Buber) – o sentido e o dimensionamento essencial da vida – nos são revelados. É precisamente naquilo que é simples que um outro revelador se nos apresenta, nos enche de encantamento e nos traz uma resposta luminosa. O Stagium desencadeia precisamente essa alquimia, pela qual o milagre do existir lança sua luz sobre o cotidiano e corriqueiro por meio do gesto preciso, da expressão certa, da coreografia que celebra a forma em sua capacidade de encadear o que poderia ser disperso num todo harmonioso e surpreendente.
Fon Fon – nome que revisita a revista homônima que circulou entre 1907 e 1945 (novamente trazendo à tona o Passado e prestando-lhe o devido tributo) – é um espetáculo que encanta, nos salva do esquecimento e da mesmice, da repetição de fórmulas comerciais fáceis e sem significância. Com Chiquinha Gonzaga, Marika e Décio, e seu Stagium, abrem alas. E nos fornecem asas para voar em direção ao Passado, ao atemporal, ao eterno, ao imaginário, ao poético. Enchem-nos de fascínio e de esperança, simultaneamente nos permitindo vislumbrar a perspectiva de um renascimento, pelo qual nos fazemos novamente crianças, nos lançando num tempo que se faz eterno. Por um lapso mágico.
Obrigada por esse grande-pequeno milagre, Marika, Décio e Stagium.
SILVIA SIMONE ANSPACH
PhD em Comunicação, (Brasil e EUA), Mestre em Linguística Aplicada (Inglaterra), Especialista em Psicologia Analítica, Psicanalista, Bacharel em Letras (Br.). Foi Fulbright Scholar na UNC – EUA. Seus livros: Entre Babel e o Éden; Arte, cura, loucura; Melosofia; A psique e a religião; Patches and Sketches; Veneno (coautoria), diversos textos em periódicos e livros no Brasil e no exterior. Vários prêmios e distinções.