INCLUSÃO, “TOLERÂNCIA”(?), ÁGAPE
INCLUSÃO, “TOLERÂNCIA”(?), ÁGAPE
Silvia Simone Anspach
Eu deveria falar de tolerância no espaço deste texto. Deveria, mas não vou fazê-lo de maneira inquestionada. Já há algum tempo, certos temas vêm sendo discutidos à exaustão, e a repetitividade de enfoques sobre eles os desgasta e os torna previsíveis. Além do mais, a cartilha do “politicamente correto” vem impondo um jargão frequentemente utilizado de maneira acrítica, mecânica e conduzindo a uma homogeneização do pensamento. O termo “tolerância”, por exemplo, que surge em tal cartilha de maneira persistente e inquestionada, apresenta uma inadequação flagrante: Em vez de “tolerarmos”, suportarmos o diverso, precisamos acolhê-lo, abraçá-lo, aceitá-lo. Além do mais, “tolerância” (bem como a noção correlata – a de “diversidade”) não pode pressupor o unilateralismo e radicalismo que se nota em grande parcela da discussão sobre o assunto a que se refere. Nem tampouco pode acarretar a confusão entre os domínios que abarca e o território da permissividade.
Prefiro utilizar um rótulo muito mais abrangente e mais inclusivo: “amor” – palavra desgastada, mal compreendida e que parece fugir à reflexão consciente, responsável. Palavra que merece discussão séria a partir de uma perspectiva acadêmica.
1. Tolerância e o terreno das dicotomias
Nada menos inclusivo, mais desfavorável à vigência da aceitação e do acolhimento que o pensamento dicotômico. Em tal pensamento, se enraíza uma série de falácias: Ou se é de direita radical ou de extrema esquerda. Ou se é coxinha ou mortadela. Quem é branco é sempre elitista e opressor, ao passo que quem é negro é necessariamente apoiador e representante de uma causa libertária. Quem apoia um modelo de família convencional é necessariamente homofóbico. Todo o padre é pedófilo; e todo o ateu tem um comportamento sexual impecável. Todo o judeu é um usurpador implacável, e todo o palestino tem direitos inquestionáveis, sendo ainda sempre apoiador da paz no planeta. “Nós” estamos corretos; “eles”, errados. E vice-versa. O número de raciocínios defectivos, falácias ou sofismas baseados no pensamento diádico se multiplica ao infinito. Sustenta desentendimentos, perigosas cisões dentro do tecido social, instabilidade política, guerras. Fundamenta a intolerância: Quem está de um lado, não enxerga o outro lado. Ou distorce o outro através de sua ótica própria, de seus pré-julgamentos e seus preconceitos. Ou seja, não vê o outro na sua alteridade, mas sim visualiza suas próprias projeções, sua sombra e seus fantasmas interiores no outro.
Se até na literatura e no cinema de quinta categoria se distinguem 50 tons de cinza, por que no plano ideológico e filosófico (exatamente domínios nos quais o Infinito poderia se instalar), distinguem-se apenas tons extremos? Por que endossar esta visão míope, perigosamente radicalizada? Onde passa a viger uma ótica deturpada, o diálogo se fecha, a polarização extremada cega. Onde parece haver diálogo, o unilateralismo impõe sua visão própria, monológica. É para isso que nos alerta Martin Buber (1982: 58):
Chamo de dobrar-se-em-si-mesmo o retrair-se do homem diante da aceitação, na essência do seu ser, de uma outra pessoa na singularidade que não pode absolutamente ser inscrita no círculo do próprio ser e que contudo toca e emociona substancialmente a nossa alma, mas que de forma alguma se lhe torna imanente; denomino dobrar-se-em-si-mesmo a admissão da existência do Outro somente sob a forma da vivência própria, somente como “uma parte do meu eu”. O diálogo torna-se aí uma ilusão (…).
E também nos lembra Ludwig Feuerbach (apud Buber, 1982: 62):
A dialética verdadeira não é um monólogo do pensador solitário consigo mesmo, é um diálogo entre Eu e Tu.
Dicotomias radicalizadoras muitas vezes se disfarçam em atitudes generosas: Cada lado se vê como salvador da pátria e da humanidade, como arauto do pensamento libertário, quando na verdade, está sepultando toda a liberdade e gerando novos modos de opressão. Em vez de “tolerância”, gera uma “ética” da exclusão – calcada num vício do pensamento ocidental: O mundo ocidental é o do “isto ou aquilo” (O. Paz, 1976: 41), eu ou eles, esquerda ou direita, preto ou branco, etc. É o mundo da exclusão, disfarçado muitas vezes em território da inclusão, tolerância, acolhimento.
2. Inclusão. Ágape. Tolerância(?)
Inversamente, a inclusão, a aceitação, o acolhimento, o amor pelo outro enquanto ser humano, fundamenta-se numa lógica como a que, segundo Octavio Paz (1976: 41) embasa o pensamento oriental:
(…) estas afirmações, o Upanishad Chandogya condensa-as na célebre forma “Tu és aquilo”.
Ou seja, não se trata de eu versus outro, eu OU o outro. O eu É o outro e vice-versa, sem perder sua própria identidade e essência.
Portanto, o verdadeiro sábio despreza o isto e o aquilo e se refugia no Tao … [Chuang Tsé] Há um ponto em que isto e aquilo, pedras e plumas, se fundem (Octavio Paz, 1976: 41)
Não se trata aqui de mera “tolerância”. Trata-se de fusão, comunhão, “relação” no seu sentido mais profundo:
A verdadeira relação é aquela que é gerada pela comunhão dos seres. Aquela que eles experimentaram com o Ser Absoluto: sem palavras, sem fadiga sem lamentos, sem desejos. Simplesmente amor, presença, entrega e receptividade. Mas sem perder a unidade de si mesmos nem ferir a alteridade. (Jorge Trevisol, 2000: 251)
O amor possessivo, que busca o poder e a satisfação do ego, não cabe neste espaço. Nem a “tolerância” ou a “intolerância”, que vêm o outro como um ser alheio, apenas suportado ou, inversamente, rejeitado. Quem comunga da ótica do outro não julga. Nem vice-versa. Na “tolerância” ou “intolerância”, há parâmetros estabelecidos, expectativas. No amor verdadeiro e incondicional, não existem expectativas, “antecipações”. E o outro não responde ou reage a um esquema prévio. Responder é ser “responsável”. E nos domínios do amor, é ser “corresponsável”: Amor é responsabilidade de um EU para com um TU (Martin Buber, 1979: 17) e vice-versa: Relação é reciprocidade (Ibid., p. 18).
Entre o EU e o TU não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia; e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes à totalidade. Entre EU e o TU não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação (…). Somente na medida em que todos os meios são abolidos, acontece o encontro. (Buber, 1979: 13)
Na tolerância, há expectativa e, portanto, há pelo menos um vestígio de narcisismo. As expectativas, “esquemas” e “antecipações” pertencem ao eu possessivo, controlador, ao reino dos espelhamentos, ao “Eros de asa mutilada”:
O reino do Eros de asa mutilada é um mundo de espelhos e espelhamentos. Mas lá onde reina o Eros alado não há espelhamento: aqui eu, o amante, volto-me para este outro homem, o amado, na sua alteridade, na sua independência, na sua realidade própria, e volto-me para ele com todo o poder de intenção do meu próprio coração. (Buber, 1982: 64)
O reino do Eros alado, do amor, da incondicionalidade é o território do Ágape:
Ágape é o amor incondicional, o amor generoso, o amor sem limites, puro e livre! [grifos meus] (…) A suposta amizade vive de expectativas. (…) As amizades interesseiras têm prazo de validade”. (Gabriel Chalita, apud Pe. Marcelo Rossi, 2010: 11)
3. Liberdade X Permissividade
“Livre” na citação acima é palavra-chave. Ágape é liberdade e cor(responsabilidade), o que não se resume no ato de seguir superficialmente rótulos listados em cartilhas de procedimento. Implica uma decisão consciente de dentro para fora, envolvendo a natureza do ser humano com outros seres, respeitados na plenitude de sua humanidade e liberdade.
Mas aqui reside uma armadilha: Aceitar, amar ou até mesmo tolerar não significa acatar qualquer coisa, sem limites nem criticidade. Não se pode compactuar com a indignidade, com o atentado à vida, com a transgressão da interação social civilizada e dos parâmetros da ética, com o desrespeito ao bem comum e ao patrimônio público. Liberdade e permissividade não se equivalem. E dizer “não” àquilo que atenta contra a dignidade do humano e da vida não é censura, e sim exercício responsável da liberdade.
O amor-Ágape é tão incondicional e livre que, na vivência extrema de Viktor E. Frankl (2005: 44) em campos de concentração, demonstrou ser capaz de transcender a morte:
…o amor pouco tem a ver com a existência física de uma pessoa. Ele está ligado a tal ponto à essência espiritual da pessoa amada, (…) que a sua “presença” e seu “estar-aqui-comigo” podem ser reais sem sua existência física. Eu não sabia, nem poderia ou precisaria saber, se a pessoa amada estava viva. (…) Se naquela ocasião tivesse sabido: minha esposa está morta – acho que este conhecimento não teria perturbado meu enlevo interior naquela contemplação amorosa. O diálogo espiritual teria sido igualmente intenso e gratificante. Naquele momento me apercebo da verdade: “Põe-me como selo sobre o teu coração …. porque o amor é forte como a morte. Cantares, 8.6”
Em suma…
O momento atual pede muito mais do que “tolerância”. Pede uma revisão de conceitos, uma reeducação do raciocínio, no sentido de transcender uma lógica de polarização, cisão, dicotomização. Não podemos nos contentar em ser alguém que meramente tolera, “aguenta” o outro. Temos que nos assumir como companheiros de jornada neste planeta. Somos todos igualmente humanos. Somos UM. Eu que comunga com o Tu. Sem buscar vitórias ou desejar derrotas. Incondicionalmente, assumindo nosso papel e missão dentro dessa jornada. Mãos dadas, juntos e não contra. Não Eu ou Tu. Eu E Tu. Fusão. Ágape.
REFERÊNCIAS BIGLIOGRÁFICAS
BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.
_____________. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva (Debates, 158), 1982.
CHALITA, Gabriel. “Prefácio”. In Pe. Marcelo Rossi. Ágape. São Paulo: Globo, 2010.
FRANKL, Viktor E. Sede de Sentido. São Paulo: Quadrante, 1998.
________________. Em Busca de Sentido – Um Psicólogo no Campo de Concentração. São Leopoldo: Sinodal / Vozes, 2005.
PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva (Debates, 48), 1976.
TREVISOL, Jorge. Amor, Mística e Angústia: Mistérios Inevitáveis da Vida Humana. São Paulo: Paulinas, 2000.
SILVIA SIMONE ANSPACH
PhD em Comunicação, (Brasil e EUA), Mestre em Linguística Aplicada (Inglaterra), Especialista em Psicologia Analítica, Psicanalista, Bacharel em Letras (Br.). Foi Fulbright Scholar na UNC – EUA. Seus livros: Entre Babel e o Éden; Arte, cura, loucura; Melosofia; A psique e a religião; Patches and Sketches; Veneno (coautoria), diversos textos em periódicos e livros no Brasil e no exterior. Vários prêmios e distinções.
Muito importante o que você escreveu sobre a noção de tolerância! Hoje funciona quase como uma mudança epistemológica, significando mais pelo seu oposto, teríamos chegado ao fim das classificações bizarras e infinitas de Borges onde os mais diferentes conjuntos de seres podiam conviver?
Obrigada Silvia!
Maravilha!!!! Como sempre expressando ideias atuais de maneira original e precisa! Parabéns!!!!
Minha cara Silvia:
Desde muito jovem, quando vivia dentro de bibliotecas, me preocupei com o termo dicotomia. Assustava-me a simplicidade com que o mundo dividia e rotulava tudo que ia à sua volta. Sempre achei que a beleza e o sabor da vida estavam justamente em se apreciar e viver as nuances. Um mestre italiano, professor de pintura, onde me meti num atelier por um ano, me ensinou as graduações das cores, as sombras e as luzes, e a dificuldade em leva-las para a tela. Seu texto vem corroborar de forma brilhante e, principalmente, jogar luz, em tudo o que sinto e penso a respeito da evolução da humanidade. Desse esplêndido artigo, digno de uma aula magna, ouso pinçar duas passagens que sintetizam meu pensamento atual:
‘…Não se trata aqui de mera “tolerância”. Trata-se de fusão, comunhão, “relação” no seu sentido mais profundo:
A verdadeira relação é aquela que é gerada pela comunhão dos seres. Aquela que eles experimentaram com o Ser Absoluto: sem palavras, sem fadiga sem lamentos, sem desejos. Simplesmente amor, presença, entrega e receptividade. Mas sem perder a unidade de si mesmos nem ferir a alteridade…’
‘…Liberdade e permissividade não se equivalem. E dizer “não” àquilo que atenta contra a dignidade do humano e da vida não é censura, e sim exercício responsável da liberdade…’
Os termos tolerância e seu antínomo, intolerância, invadiram nossas vidas de tal jeito que, hoje em dia, chegamos ao cúmulo de sofrer intolerância à própria palavra. Você usou o termo ideal, comunhão, que muitos associam erradamente à religião, este sim, o objetivo maior – juntamente com a empatia – a ser buscado no relacionamento entre seres humanos.
Perfeita também sua colocação mostrando a diferença entre liberdade e permissividade, que hoje, levados pela ideologia, muitos confundem e passivamente aceitam.
Enfim, uma aula de mestre, dada por quem tem, além de sólidos alicerces culturais, aliados a uma capacidade ímpar de comunicação, a sensibilidade para auscultar a alma do ser humano e mostrar caminhos, como só os verdadeiros intelectuais e formadores o possuem. Parabéns!
Uma vez eu escrevi:
Incluir não é apenas abrir uma porta para o outro entrar no seu mundo.
É aprender com o mundo do outro onde entra você.
Gratidão, Silvia. Aprender com você faz o meu amor mais inclusivo.
Perfeita reflexão! Realmente temos que rever nossos conceitos !
Parabéns Silvia ! Você sempre nos surpreende!
Silvia analisa a inclusão, a tolerância (ou não), o amor incondicional, sem limites, puro, livre, dentro de um universo com respeito total pelo próximo, que nos parece fácil estabelecer uma linha de raciocínio entre o que ocorre dentro e fora de nossa ótica individual.
A liberdade com responsabilidade e consequente exercício do amor ligado à essência espiritual fazem com que pensemos em rever conceitos e pré- conceitos a fim de aceitarmos, entendermos as atitudes e posicionamentos de nosso próximo na plena comunhão de seus valores e princípios mais íntimos.
Isso se define como amor incondicional, o amor que não julga, não critica, nem tem interesses outros senão compreender a dinâmica que rege a vida do outro. Cada um deve ser livre para chegar à individuação e deixar que o outro faça o mesmo, respeitando suas escolhas e opções, diferenças e/ou semelhanças.
Parabéns por interpretar o pensamento social atual e conseguir tão detalhada explanação.
Extremamente oportuno, profundo e necessário para o nosso tempo. Seu insight sobre o termo tolerância é no mínimo revelador, mas por que não dizer genial? É preciso que nos esforcemos como humanidade a de fato ver o outro, não deixá-lo passar desapercebido ou indiferentes a nosso olhar. Amar é um aprendizado, é difícil, requer trabalho duro. Você fez o convite! Parabéns, Silvia.
Honestamente, nunca percebi como estamos tão “acostumados” e sendo levados a ter uma visão tão errônea da palavra tolerância.
São tantas as “novas falácias e teorias ” de como devemos agir, falar, fazer e até amar que, por mais que tentemos, torna-se praticamente impossível viver e conviver em sociedade.
O amor incondicional ao meu ver perdeu seu verdadeiro sentido para o politicamente correto e o individualismo tomou seu lugar.
Essa busca insana pela felicidade a qualquer custo nos torna egoistas, vazios e cada vez mais desumanos.
Enquanto não amarmos incondicionalmente nosso próximo, estando este longe ou perto fisicamente, todos esses modismos e conceitos prevalecerão e a verdadeira essência do homem e sua capacidade de amar incondicionalmente perderão espaço em nossos corações até que desaparecerem para sempre.
Parabéns pelo artigo perfeito e esclarecedor.
Uma definição clara, simples e, sobretudo, verdadeira do real significado da palavra tolerância.
Excelente ?????
Sílvia, sempre brilhante na exposição de suas idéias. Constrói sua argumentação ponto a ponto, como tecelã q cria a trama dos pensar/sentir e os traz para nós pronto, materializado. Parabéns.
Sempre me surpreendendo c a versatilidade do seu pensar a vida.