Sustentabilidade: Uma questão humana e psicossomática
Amigos, Estamos muito honrados em publicar o artigo “Sustentabilidade: Uma questão humana e psicossomática” de Silvia Simone Anspach em nossa revista Openzine. Ela nos lembra que a sanidade e a continuidade de nossa espécie são inseparáveis e que temos um longo caminho pela frente e para dentro se quisermos encontrar as soluções que buscamos ao planeta e como espécie. Constatação feita também por Martin Luther King: “Aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não aprendemos a conviver como irmãos”.
Reflexões profundas e pertinentes.
Boa leitura,
Regina Proença
Sustentabilidade: Uma questão humana e psicossomática
Silvia Simone Anspach
Muito se tem debatido acerca da importância da “sustentabilidade”, o que ela implica e a maneira pela qual deveria ser idealmente alcançada bem como sobre os mecanismos que supostamente garantiriam sua implementação. Raramente, no entanto, se considera a possibilidade de que um mundo sustentável talvez não traga resultados positivos em termos do desenvolvimento interior, saúde mental e física, e realização pessoal do ser humano. Em outras palavras, uma questão central vem sendo negligenciada: O que há de humano na sustentabilidade? Esquecemos de nos perguntar se cidades sustentáveis, produção industrial igualmente sustentável e equilíbrio ecológico seriam suficientes para garantir estabilidade e harmonia. Até que ponto estes elementos garantiriam o bem-estar e a sobrevivência da espécie humana neste planeta, de acordo com padrões minimamente aceitáveis?
Estudos e propostas recentes enfatizam a importância de um contexto sustentável, sem considerar o ser humano, que ocupa o centro deste contexto. Uma questão fundamental deve ser considerada: Qual a função de um mundo sustentável, se a humanidade (que deveria se afirmar como sujeito e agente de tal mundo) não for psicologicamente sustentável?
Linearidade? Dinâmica teleológica?
Um planejamento acerca de como tornar o desenvolvimento sustentável, o empenho em criar com cidades, indústrias, agricultura e ecologia sustentáveis normalmente pressupõem a visão de que a dinâmica natural e cultural apresenta uma natureza teleológica. Em outras palavras, toma-se como garantido o pressuposto de que, mediante certas escolhas e fatos, um dado resultado será inequivocamente produzido, e uma meta pré-estabelecida será alcançada sem qualquer sombra de dúvida.
A História tem provado que tal pressuposto não passa de uma falácia. Inúmeros exemplos de processos de natureza não teleológica envolvendo seres humanos pontuam e marcam toda a evolução social, política e cultural. Os dogmas que levariam à justiça social, à igualdade e ao bem-estar nos países da antiga União Soviética e na Alemanha Oriental, por exemplo, acabaram por desencadear exatamente o oposto: instabilidade, violência, desigualdade, privação do pensamento e da expressão livres e opressão. Outro exemplo foi a crença em uma “raça pura”, que não apenas levou ao Holocausto e à derrota da Alemanha na Segunda Grande Guerra, mas também se provou falsa a partir de subsequentes achados nas áreas de genealogia e genética.
Estes são apenas dois exemplos em meio a uma multiplicidade de desenvolvimentos imprevisíveis, os quais vêm sempre desafiando a linearidade e a teleologia ao longo da História. Evidenciam o fato de que, sempre que o ser humano apareça como uma variável, nenhuma previsibilidade ou certeza pode se sustentar. Além do mais, a Natureza e as leis que a governam – as quais muitos estudiosos admitem provir de um Ser Supremo e Criador – impõem sua própria ordem. Desencadeiam inúmeros eventos – secas, inundações, tsunamis, terremotos, etc. – que forçam qualquer plano a ser repaginado, determinando uma alteração total e imprevisível de trajetória em direção a metas jamais antecipadas pela mente humana. O mesmo pode ser afirmado com relação ao mundo empresarial. Um programa delineado com o fim de contribuir para um contexto sustentável e tendo em vista o não-esgotamento de recursos naturais pode parecer eficaz. Porém, se os indivíduos envolvidos no seu processo de implementação se estressarem demasiadamente, se abominarem as atividades requeridas por sua dinâmica, e ainda, se suas relações interpessoais se tornarem tensas e problemáticas, a estabilidade psicológica e a harmonia interativa podem ser seriamente danificadas.
Cursos que objetivam educar e formar líderes frequentemente arrolam medidas a serem tomadas passo a passo, listas de comportamentos a serem adotados e de atitudes a serem evitadas, prometendo resultados positivos ao fim do processo desenvolvido. No entanto, como a psique é única, idiossincrática e imprevisível, e uma vez que as circunstâncias externas se alteram continuamente exigindo permanente adaptação, nenhum programa formativo de líderes pode ser encarado como garantido e imune a erro.
Sustentabilidade humana: Uma questão psicossomática
O que deve ser considerado prioritariamente e em última análise é que o trabalho, projetos e empresas – quer voltados para um mundo sustentável quer não – devem considerar os indivíduos engajados em seus planos como prioridade. Em outras palavras, é necessária uma mudança de foco: harmonia intra e interpessoal em primeiro lugar. Equilíbrio contextual como meta, desde que o elemento humano central seja antes respeitado e atendido em suas necessidades mais básicas. O ser humano é centro (“texto”), agente para o qual o mundo sustentável a que se almeje (“contexto”) contribui e atua. Não existe contexto harmonioso sem que haja um agente ou sujeito harmonizado.
Com frequência, as exigências e demandas vinculadas ao trabalho são fonte de estresse, pressionando a mente, o corpo e a alma humanas. O resultado é que, quanto mais o universo profissional busca uma produtividade crescente, paradoxalmente, mais ele contribui para um decréscimo dos níveis de eficiência. O contexto profissional é, muitas vezes, gerador de transtornos mentais e de toda a sorte de enfermidades. Aumenta o absenteísmo. Diminui a produtividade. Neste sentido, a produtividade e a sustentabilidade tornaram-se, na verdade, uma questão de natureza psicossomática, a ser encarada e tratada por profissionais da área de saúde.
Tecnologia e o Homo Sapiens
Desenvolvimentos na área de inteligência artificial vêm sendo sistematicamente aclamados como um processo fundamental e como a maior conquista e principal meta da existência humana. Espera-se que a inteligência artificial supere e substitua a humana e que até mesmo possa passar a subsistir sem esta. Porém, a inteligência subjetiva não pode jamais ser sujeitada ao e dominada pelo contexto tecnológico gerado pela mente humana através da História. O homem, enquanto criador, não pode jamais ser ultrapassado por sua própria “criatura”.
Consciência, autodescoberta e crescimento interior são absolutamente necessários. Psicanálise, psicoterapia, meditação, religião e práticas alternativas desempenham um papel fundamental na expansão do Self – o qual, Segundo C.G. Jung, é o centro, a meta e o eixo ao longo do qual a individuação e o desenvolvimento humanos se desdobram gradualmente e vão ganhando forma. A autoconsciência, o conhecimento profundo de nossa unicidade como seres humanos individuais são um instrumento de resistência e de reasserção da própria essência humana específica da espécie. Ao invés de servir a uma realidade governada artificialmente, o contexto tecnológico deve nos servir e contribuir para a nossa sustentabilidade humana.
O pesquisador Noah Harari prevê que a espécie sapiens desaparecerá da face da Terra em poucos anos ou décadas. A chave de acesso à unicidade de nossos corpos e mentes será publicamente disponível, tal como já o são nossas impressões digitais. Governos, departamentos de inteligência, o sistema de saúde pública, a Receita Federal, a Amazon, o Facebook e afins em breve conseguirão decodificar e acessar nosso Self (tanto físico quanto psíquico), e poderão nos compreender muito mais imediata e plenamente quanto nós mesmos possamos ser capazes de nos conhecer.
Uma alteração de foco em direção a uma resistência à mudança antes que esta possa ter lugar é, portanto, uma necessidade vital. Se não encontrarmos a essência de nossa própria condição enquanto agentes de qualquer mudança, acabaremos por ser objetos de processos que tenhamos desencadeado no Passado, e sobre os quais possamos não mais ter qualquer controle.
A sustentabilidade humana reafirma nosso papel como sujeitos de nosso Destino sobre a Terra e resguarda nossa racionalidade enquanto espécie sapiens, ao invés de transferi-la para uma ordem que se mova mecanicamente e à nossa revelia. Sobretudo, contribui para nosso equilíbrio interno e para um crescimento da produtividade de acordo com padrões éticos. Um mundo sustentável pode apenas existir onde as relações empresariais sejam saudáveis, e onde os indivíduos permaneçam sãos e íntegros. Esta é a nova ordem a que devemos todos idealmente aspirar.
English
Sustainability: A human and psychosomatic issue
Silvia Simone Anspach
Much has been said about what “sustainability” is, how it should ideally be achieved, and what mechanisms allegedly grant its successful implementation. Seldom do people question whether a sustainable world is all it takes to generate a positive outcome for the internal development, health and fulfilment of human beings. In other words, a central question is systematically neglected: what is human about sustainability? Are sustainable cities, sustainable industrial production, sustainable ecological balance enough to promote stability and harmony, granting welfare and the (healthy) survival of the human species on the planet?
Recent studies and proposals underlie the importance of a sustainable context, without considering the human being that occupies the center of this context. A fundamental question is: what is the use of a sustainable world, if humanity (that is the subject and agent of this world) is not psychologically sustainable?
Linearity? Teleological dynamics?
Planning on how to make development more sustainable, and focusing on sustainable cities, industry, agriculture and ecology usually rely upon the assumption that natural and cultural dynamics are marked by a teleological nature. In other words, it is taken for granted that, given certain choices, actions and facts, a definite outcome will unquestionably and surely be generated, and a pre-established goal will undoubtedly be reached.
History has proved this to be a fallacy. Examples of the non-teleological nature of processes involving human beings abound throughout social, political and cultural evolution. The dogmas that would lead to social justice, equality and welfare in the former Soviet Union countries and in East Germany, for instance, brought about unrest, violence, inequality, deprivation of liberty and oppression, instead. Another example was Hitler’s belief in and search for a “pure race”, which not only led to the Holocaust and to the defeat of Germany in World War II, but has also been proven wrong by scientific findings in the area of genealogy and genetics.
These are only two examples among a multitude of unpredictable developments that have always challenged linearity and teleology throughout history. They highlight the fact that, wherever the human being appears as a variable and as a central entity, no predictability or certainty exists. Also, Nature, and the law that governs it – which many scholars and scientists have claimed to stem from a superior Being and Creator – impose their own order, and bring about a number of events – droughts, floods, tsunamis, earthquakes, etc. – that force plans to be rearranged, and cause events to move towards an utterly unpredictable direction.
The same can be said about the corporate world. A program devised to contribute to a sustainable context and aiming at not depleting natural resources may seem to be successful. Still, if the people involved in it become overstressed throughout the process of implementation, if they hate the daily activities required by its dynamics, and if their interpersonal relationships are tense and flawed, psychological stability is doomed and personal and interactional harmony can be seriously harmed.
Courses aiming at educating and forming leaders frequently present step-by-step measures to be taken, behaviors to be adopted, and attitudes to be avoided, promising positive results at the end of the whole process. However, as the psyche is unique, idiosyncratic and unpredictable, and as external circumstances constantly change, calling for permanent adaptation, no such program is ever foolproof.
Human sustainability: A psychosomatic issue
What must be primarily and ultimately considered is that, work, projects, and corporations – whether aiming at a sustainable world or not – must view individuals engaged in professional programs as top priority. In other words, there must be a shift of focus: personal and interpersonal harmony coming first. Contextual balance will emerge as a subsequent goal, respecting this fundamental harmony without which no project can be regarded as sustainable, fair or acceptable. The human being is the center (the “text”), the agent to whom a prospective sustainable world (“context”) contributes. The world depends on such agent, and not the reverse. There is no such thing as a harmonious context without a harmonized agent or subject.
Demands at work are often stressful, imposing pressure upon the human mind, body and soul. The result is that, the more the professional world aims at increasing productivity, paradoxically, the more it brings about a decrease in efficiency and in positive results. The professional context is often a source of mental disorders and psychosomatic ailments. In this sense, productivity and sustainability have actually become a psychosomatic issue, to be handled by health-care professionals.
Technology and the Homo Sapiens
Developments in the area of artificial intelligence have systematically been praised as the central process to be encouraged, and regarded as the ultimate achievement and goal of human existence. Artificial intelligence is expected to replace and transcend human intelligence, and even do without it. However, subjective and human intelligence cannot be subjected to and dominated by the technological context that the human mind and knowledge has generated throughout history. Man, conceived as creator, cannot be surpassed and submerged by its “creature”.
Awareness, self-discovery and internal development are a must. Psychoanalysis, psychotherapy, meditation, religion and alternative practices play a fundamental part in boosting the Self – which according to C. G. Jung, is the center, the goal, and the axis along which “individuation” and human growth gradually unfold and gain tangible form. Self-awareness and a deep knowledge of our uniqueness as individual human beings are instruments of resistance and of reassertion of the very humanity of the human kind. Instead of serving an artificially governed reality, the technological context must serve us and contribute to our human sustainability.
Scholar Noah Harari predicts that the species sapiens will disappear from the face of the earth in a few years or decades. The key to the uniqueness of our bodies and minds will be as easily accessible as our fingerprints. Governments, intelligence departments, health-care systems, the internal revenue system, Amazon, Facebook and the like will soon be able to decode and have access to our inner (both physical and psychological) Self, and will be able to understand ourselves more promptly and more fully than we ourselves would ever know or fathom.
Shifting the focus beforehand, and resisting this change before it takes place are therefore a must. If we do not find the essence of our condition as agents of change, we will end up being objects of processes we once triggered, and over which we may no longer have any control.
Human sustainability reasserts our role as subjects of our destiny on earth and keeps our rationality as a species – Sapiens – instead of transferring it to an order that moves mechanically and out of hand. Moreover, it contributes to our inner balance and to an increase in productivity according to ethical standards. A sustainable world can only exist where entrepreneurial relationships are healthy and individuals are sane. That is the ideal order that we should aspire to.